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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

O rio é um tesouro

09
Set20

o rio é um tesouro.jpg

 

A menina chegou perto do Rio e viu que ele parecia um tesouro. A luz do Sol fazia brilhar a água tal como brilham as pedras preciosas. E disse em voz alta:

- O Rio parece um tesouro!

E a gaivota que por ali andava ouviu-a e disse numa voz estridente de gaivota dos mares:

- É verdade, o Rio é um tesouro escondido à vista de toda a gente!

A menina assustou-se com aquela voz, e levou algum tempo a perceber quem tinha falado. Depois ficou admirada, porque as gaivotas não falam, mas a gaivota dos mares esclareceu-a:

- Só compreende a minha voz quem tem a capacidade de descobrir tesouros, tu és uma dessas pessoas, apenas tu ouves as minhas palavras, os outros ouvem os meus guinchos, faz que me dás de comer e eu revelo-te o tesouro que está escondido nestas águas que vês à tua frente.

A menina assim fez, e ali na muralha, com o cheiro da maresia no ar a gaivota lhe contou:

- Sabes que o Rio serve de estrada? Quando as pessoas querem chegar à outra margem usam os barcos como meio de transporte, mas também os usam para ganharem o seu salário e sustentarem a sua família. O Rio é a casa de muita gente, aqui vivem: golfinhos, polvos e muitas espécies de peixe, alguns deles vêm do Oceano para desovar aqui. Desovar quer dizer: deixar aqui os seus peixes bebés, tal como numa maternidade onde estão os bebés humanos. Esses peixes pequeninos crescem nas pradarias marinhas, junto dos cavalos marinhos e de moluscos. As pradarias marinhas protegem esses peixinhos, dando-lhes abrigo das correntes e de outros peixes maiores e até dos humanos, para que depois eles cresçam e um dia voltem aqui para deixarem cá os seus filhos. E o Rio também tem estrelas, estrelas que se mexem e andam pela areia do fundo do rio, algumas são coloridas e há também ouriços que têm muitos picos fininhos. E há algas fortes e escorregadias que parecem que dançam ao som da corrente marítima. São nessas correntes marítimas que os peixes aproveitam para nadar em alta velocidade. Como se fosse uma estrada feita de mar. Eu às vezes espreito para dentro de água, mas o que mais gosto é perseguir um barco cheio de peixe, ou então nas horas de lazer fazer voos rasantes nas ondas. Durmo em cima de uma rocha quando está mau tempo e bóio tranquilamente quando as águas andam calmas. Como podes ver o Rio é mesmo um tesouro. É um tesouro de vida. 

 

 

 

Este texto é dedicado às filhas da Joana e a todos vocês que me ajudaram a alcançar a outra margem e a manter-me à tona sempre que o Rio estava mais agitado e a travessia parecia não ter fim. Obrigada por me terem acompanhado, pelas vossas palavras, pela escuta, pelos exemplos, pela vossa escrita, pela informação, pela motivação, pela diversidade que há em cada blog. Os amigos também são um Tesouro, sejam eles virtuais ou não. Um Abraço Gigante. 

A irmã do vírus COVID-19 chama-se crueldade

05
Set20

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Ilustração Francisco Fonseca

 

Eu tenho uma janela para o mundo. Tu tens uma janela para o mundo. Eles têm uma janela para o mundo. Todos os dias o Sol incide a sua luz e o seu calor nessa janela. Todos os dias a Lua espreita por ela, umas vezes mais cheia, outras mais pequenina. Nessa janela acontece de tudo, há barulho, há silêncio, há roupa estendida, há plantas verdes. É uma janela com vidros frágeis, mas a paisagem tem muito alcance. Assomam-se nela aranhas e pequenos mosquitos. E veio um vírus, num ano metade/metade, com dois números iguais, duas fatias lado a lado, a saúde mental alterou-se por todo o lado, o medo anda no bolso de qualquer um, as pessoas não visitam a família, nem comemoram com jantaradas à roda da mesa de sempre, dizem que não querem contagiar ninguém. As pessoas pensam nos outros, têm um coração grande. Mas por detrás da janela que dá para o mundo mora um vazio que magoa, que cria raízes, que se entranha por todo o lado até chegar à janela. E as pessoas boas? As pessoas boas andam a comer em restaurantes e passear-se por tudo quanto é lado. Por aí há muito álcool gel e a limpeza é feita a preceito. E por onde anda o vírus? Esse está à janela daquele que ouve a desculpa. 

Antes que os figos se acabem

03
Set20

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Antes que os figos se acabem, e com eles o gosto fugaz do Verão. Comerei o seu doce sabor, meloso e suave que  me deixa os dedos pegajosos. O figo sereno, figo maduro, figo seco. Onde se escondem os amores fatais das vespas. Amores intensos e mortais em dias de muito calor. Comemos assim o Amor, escorrido na nossa saliva, degustado num entardecer ao canto intenso das cigarras. Então, na ponta dos nossos dedos abrimos aquele tesouro único e irrecuperável, vemo-lo apenas uma única vez intacto. Milhões de formigas fazem carreiros, caminhando sem cessar. No meio a sensação do tempo que ficou parado e no ar o cheiro das folhas lisas da figueira, resistentes ao calor, são de verde claro, ou então de verde figo.  

 

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Sou a ponte que me liga

01
Set20

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Ilustração Jeremy Norton

 

Este corpo
que agora me veste
ainda é casca
e casulo
de um outro bicho
que cresce.
 
 
Esta capa que me acompanha
desde os tempos
de criança
desce inútil
aos meus pés.
Sou a ponte
que me liga.
 
 
Sou o gesto
que me une.
Sou o fui
e o serei.
 
 
Este tempo
que me guarda
para um outro
amanhecer
é lembrança
e  é promessa,
recordação e
esperança,
morte e vida
enoveladas
na meada
das mudanças.
 
 
 
 
Poema de Carlos Queiroz Telles, in Sementes de Sol

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