Ultramar, Angola, refugiados, Portugal, racismo, educação, memórias, lembranças, infância...
Vamos aprender a ler nas entrelinhas
Tirei estas fotografias para vos mostrar como era estudar em Angola nos anos 70 do século passado, muitos de vocês partilharão destas memórias, que até nem são minhas, são do meu marido. Estas páginas são de um livro da 1º classe, onde lhes era ensinado a ler as frases básicas do seu quotidiano.
Nós que por estes dias temos falado tanto em existir racismo em Portugal, esquecemos as feridas que nos foram impostas. A mim calhou-me um pai vindo do Ultramar, obrigado a ir para uma guerra aos 21 anos, provavelmente sem saber o que fazia ali, dizem os outros que nunca mais foi o mesmo desde que voltou, e eu que nunca o entendi, talvez por ele nunca falar nada sobre o assunto. Agora à distância dos anos, entendo que há feridas que nunca saram, por mais que o tempo passe e por mais que a gente finja que não existem.
No fundo todos fomos vítimas, uns no passado, outros no futuro, bastantes no presente. O meu sogro viveu em Angola durante dezoito anos, lá casou, com a noiva vinda de Portugal. E juntos estiveram por lá mais de uma década, dois filhos, casa feita, vida tranquila até a guerra chegar a eles. Enquanto isso outros andavam pelo mato de espingarda às costas... escrevendo cartas às mães e às namoradas. Vidas paralelas e opostas.
Esta é a História que ninguém quer contar. Cheia de dor e sofrimento. Incertezas e juízos de valor. Sempre pensei que podia ter um irmão ou uma irmã lá para aquelas bandas. Impossível saber. Brinco, mas a sério, e digo o mesmo ao meu marido. Uma vez vi uma reportagem que chamava a estas crianças: "filhos do vento". É sem dúvida verdade, o vento a gente sente, sabe que existe, mas não o encontramos aos nossos olhos.
Os retornados, o meu marido nunca foi um retornado, ele era um refugiado. Tal como ele milhares de crianças que aí nasceram. No entanto, devido à sua cor de pele ninguém o manda para a sua terra. Já eu que sou de pele escura, sempre fui considerada retornada, que ironia do destino. O preconceito tal como o vento, a gente sente, a gente sabe que existe, mas por vezes não reconhece de onde vem.
Não podemos apagar o passado, no entanto é nosso dever transformar o futuro, quebrar a História. Saber que o capim é erva. Que branco é igual a preto. Ultrapassar as ideias feitas de que tivemos um passado grandioso. Descobrir que o nosso passado recente ainda está bem presente no nosso quotidiano, por mais que digam que não.
E o que eu gosto desta mistura de cores. Dos linguajares doces e dengosos. Daqueles cantos mornos. Daquelas peles de seda e daqueles cabelos fofinhos. Daqueles sorrisos fascinantes. Duma muamba de galinha. É para mim fascinante ver que na diversidade temos tanto a ganhar. Aflige-me que assim não seja na realidade.
Fico a imaginar quanto ficou por dizer, do que nunca dissemos uns aos outros. Daquilo que nunca nos atrevemos a descrever, sentimentos, raivas, amores, esperanças. Li algures que devemos matar a esperança, pois é ela que nos impede de progredir. Talvez seja verdade, muitas vezes ficamos presos a ela e não agimos, perdemos, foi tanto que nem demos por isso, ou deixamos de ligar, para não ficarmos magoados, outros por medo, quem sabe se por vergonha.
No fundo somos todos alunos a vida inteira. Nesse caderno que é a vida podemos escrever o que quisermos, seja o texto inventado ou não. Mas esse caderno envelhece, e as suas folhas amarelam quando são desgastadas pelo tempo e pelas ironias da vida. Não sei o que valha mais: se um ditado escrito, se uma redacção livre. No meu caderno gostaria de ter os dois.
Também somos sempre meninos. Há uma chama da infância que mora em nós, escondida por vergonha do adulto. Desse adulto que não se liberta dos preconceitos, que vive amarrado à moda quotidiana do seu tempo. Que teima em carregar o sofrimento como destino universal. Que alimenta a estupidez de uma verdade única. Que quer descobrir novos mundos, mas não cuida do seu.