Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Diário dos meus pensamentos (39)

27
Abr20

rolar.gif

 

Ilustração Harry Tennant

 

desenterrei do meu baú a pipa
construída num sonho. percebi
que não sei pedalar em linha reta,
que tenho nos joelhos uma fissura
de loucura de viver em mar aberto.
sinto saudade do seu nome
como quem tira as botas ensanguentadas
ao regressar da guerra. mergulho
meu peito palácio em água fervente
e admiro religiosamente a foto
que consta no rg recém fraudado.
é preciso dizer aos viajantes
que as dunas são proibidas
embora bonitas. assim como
fechar os olhos ao sentar no colo de alguém
ou pensar mais de três vezes
por dia em quem te puxou
pra dançar. é proibido amar,
é proibido soprar um dente de leão
pra espantar o medo.
assim como é proibido encontrar
e lamber com vontade o mar aberto que existe
no meio de cada pessoa. a sorte
é que nesse momento, diante da cerca elétrica,
da placa, da assinatura de autoridade,
finjo não saber ler
absolutamente nada

 

 

 

Poema de Regina Azevedo

 

 

Diário dos meus pensamentos (38)

26
Abr20

viver.jpg

Ilustração  Takeshi Jonoo

 

A maior parte de nós tem passado as últimas semanas a viver à janela, é através das janelas que estamos também a abrir as nossas futuras portas, e há quem diga que tem medo do futuro, e quem diga que vem aí muita fome, e quem não saiba o que fazer, e quem vá ficar sem o emprego, e quem tenha medo de apanhar a doença, mas haverá um dia em que temos de sair e enfrentar tudo isto. Claro que vai ser assim, mas sempre foi assim, muita gente passa fome no mundo, muita gente não tem emprego, muita gente é refugiada, muita gente enfrenta outras doenças. Temos que conseguir resolver estes problemas com a criatividade que nos tem feito sobreviver à janela, viver com menos, partilhar mais, pode parecer redutor para quem cresceu a valorizar fortunas, mega fortunas, para quem procura nas pechinchas baratas o melhor do seu dia, mesmo sabendo em que condições foram elaboradas, pode parecer uma utopia para quem sabe apenas gerir com base em salários baixos para os "colaboradores" e salários enormes para os gestores de topo. A sua criatividade não vai para além disso. O que temos de fazer é uma "Revolução de Atitudes", ouvi dizer ontem o rapaz do Black Pig Gin, o Miguel Ângelo Nunes, gostei bastante da sua atitude e desta designação - Uma Revolução de Atitudes - é isto mesmo, não podemos mais continuar a viver a vida como seres apáticos, valorizando demasiado os valores materiais, menosprezar a Natureza e o planeta, andarmos como escravos sujeitos às modas, sem pensamento crítico, constantemente rezando a oração de que isto está mal, que aquilo não é possível, num autoritarismo depressivo que nos leva aos confins do pior que existe em cada um. Este é um excelente e breve momento na nossa existência para mudarmos as nossas atitudes e as nossas prioridades de vida,  a cada um a sua -  janela da oportunidade

A inteligência humana

26
Abr20

andorinhas.jpg

Ilustração Catrin Welz-Stein

 

A minha rua tem andorinhas, já teve mais, agora resumem-se a poucos ninhos. Antes haviam pequenos cursos de água, onde as andorinhas iam buscar o barro para fazerem o ninho. Agora está tudo tapado, ou então cobriram o chão das linhas de água com pedras e rede, para ficarem bonitas. O ano passado alguns prédios foram pintados na Primavera, e os telhados foram lavados a esguicho de pressão, levaram todos os ninhos que existiam naqueles locais atrás de si. Por mais de um dia as andorinhas andaram a bater contra a parede onde tinham o ninho. Ninguém quis saber, nem moradores, nem pintores, nem responsáveis pela obra, nem responsáveis da autarquia. Os animais tiveram de continuar com as suas vidas. A nós não nos é permitido saber a que tipo de inteligência pertencem. Somos tão estúpidos. Nessa mesma Primavera cortaram as árvores da avenida como se tivessem a fazer uma amputação, raparam tudo o que tinham para rapar, não sobrou um ramo onde os pássaros pudessem poisar, apresentei queixa, durante dois dias pararam com aquilo, depois disseram-me que era a poda, e que era mesmo assim, informaram-me ainda que as pessoas tinham feito queixa que as árvores retiravam a luz das casas, são árvores de folha caduca, e ficam a mais de seis metros das paredes dos prédios, esse Verão foi infernal, o interior das casas tornou-se abafado, as árvores tinham poucas folhas, poucos ou nenhuns pássaros andavam por ali.  Somos tão estúpidos. 

 

Dá-me vontade de rir quando nos auto-intitulamos os seres mais inteligentes do planeta, e há até quem diga do universo, essa é de chorar a rir, quando não conseguimos compreender aquilo que se passa mesmo ao nosso lado, como conseguimos saber o que se passa em todo o lado? E afinal o que é a inteligência? Eu por exemplo não considero uma pessoa mesquinha de inteligente, porque mesmo que consiga perceber de muita coisa e em diversas áreas, é pobre de espírito, não consegue revelar-se para além do seu umbigo. 

 

Ninguém consegue perceber verdadeiramente as coisas sem a experiência, ou então através da observação, talvez por isso ser-se inteligente nem tenha muito a ver com estudos e títulos académicos, ou com os pequenos e grandes poderes, mas antes com a absorção de tudo o que há em nós e para além de nós, coisa que só começamos a compreender lá mais para o final da nossa vida, os verdadeiros sábios são aquele que buscam sempre ir para o lugar o outro. De resto somos todos tão estúpidos.