Sabes, pai,
lembro-me dos teus pés
muito grandes e das calças
que eu não conseguia acompanhar
com o olhar até à cintura.
O teu rosto que não sorria
estava como que desenhado
no tecto escuro
por onde voavam as asas
da minha inquietação.
Nunca os teus olhos sorriram nos
meus nem a minha transparência
perturbou o teu sono.
Para não comunicares
ergueste uma parede de medos
que ainda hoje subo e desço quando
procuro saber onde me perdeste.
As músicas, as cores,
as estações e as danças
habitam a minha cabeça,
os meus pés e a minha boca.
Sabes, o silêncio que impuseste gritou,
a crueza do nada floriu,
a inexistência dos meus sonhos
só era real para ti.
Rasguei os panos ensanguentados
da solidão e com eles costurei
roupas, maresias, amores, palavras.
Ainda continuo a amar os panos.
Poema de Lília Tavares