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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

O rio

07
Ago11

 

 

 

 

Do novelo emaranhado da memória,

da escuridão dos nós cegos,

puxo um fio que me parece solto.

 

Devagar o liberto,

de medo que se desfaça entre os dedos.

 

É um fio longo,

verde e azul,

com cheiros de limos,

e tem a macieza quente do lodo vivo.

 

É o rio.

 

Corre-me nas mãos,

agora molhadas.

 

Toda a água me passa entre as palmas abertas,

e de repente não sei se as águas nascem de mim,

ou para mim fluem.

 

Continuo a puxar,

não já memória apenas,

mas o próprio corpo do rio.

 

Sobre a minha pele navegam barcos,

e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.

 

Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como apelos imprecisos da memória.

 

Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.

 

Ao fundo do rio de mim,

desce como um lento e firme pulsar de coração.

 

Agora o céu está mais perto e mudou de cor.

 

É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves.

 

E quando num largo espaço o barco se detém,

o meu corpo despido brilha para debaixo do sol,

entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.

 

Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.

 

Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.

 

Imóvel,

espero que toda a água se banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas.

 

Então,

corpo de barco e de rio na dimensão do homem,

sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.

 

Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.

 

Haverá o grande silêncio primordial quando as mão se juntarem às mãos.

 

Depois saberei tudo.

 

 

 

José Saramago

 

 

 

Alice Alfazema