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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Pele negra

30
Mar19

Você pode me riscar da História
com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.
Minha presença o incomoda?
Por que meu brilho o intimida?
Porque eu caminho como quem possui riquezas dignas do grego Midas.
Como a lua e como o sol no céu,
com a certeza da onda no mar,
como a esperança emergindo na desgraça,
assim eu vou me levantar.

 

 

pele negra.jpg

 

 

Você não queria me ver quebrada?
Cabeça curvada e olhos para o chão?
Ombros caídos como as lágrimas,
minh'alma enfraquecida pela solidão?
Meu orgulho o ofende?
Tenho certeza que sim
porque eu rio como quem possui
ouros escondidos em mim.
Pode me atirar palavras afiadas,
dilacerar-me com seu olhar,
você pode me matar em nome do ódio,
mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.

 

 

pele negra1.jpg

 

 

Minha sensualidade incomoda?
Será que você se pergunta
por que eu danço como se tivesse
um diamante onde as coxas se juntam?
Da favela, da humilhação imposta pela cor,
eu me levanto.
De um passado enraizado na dor,
eu me levanto.
Sou um oceano negro, profundo na fé
crescendo e expandindo-se como a maré.
Deixando para trás noites de terror e atrocidade,
eu me levanto.
Em direção a um novo dia de intensa claridade,
eu me levanto
trazendo comigo o dom de meus antepassados,
eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
eu me levanto
eu me levanto.

 

 

 

Poema de Maya Angelou

 

As ilustrações são de Kehinde Wiley

 

 

Micro contos - A tua vida apodrece ou ferve?

26
Mai17

Ilustração Tonya Engel

 

Estive a observar a água, deixei que fervesse até desaparecer, muitas bolhas explodiram, fizeram barulho e davam um ar de sua graça, transformaram-se em vapor, foram-se e o recipiente ficou vazio. Coloquei novamente água no púcaro e deixei ficar sem lume, sem nada, passaram os dias e a água apodreceu, deitei-a fora, já não podia mais com o cheiro.

 

 

Alice Alfazema

Nós as mulheres queremos viver serenas de tradições?

29
Ago16

Ontem dia vinte e oito de Agosto de 2016, fui à praia, estive estendida na minha toalha de sempre, com a minha filha ao meu lado, as duas na mesma sombra, as duas mulheres, em idades diferentes, com gostos diferentes, com objectivos diferentes, com vidas paralelas. Eu e a minha filha, somos iguais em género, somos iguais na linguagem, queremos coisas bonitas, gostamos de ir passear, de ir à praia, do sol, de amigos, de liberdade de escolha.

 

Ontem da minha toalha, olhei a praia, as pessoas estendidas no areal quente, o som das vozes era calmo, calor de Agosto, domingo, férias. 

 

Ontem da minha toalha, vejo duas miúdas na passadeira de madeira, de mãos dadas, talvez irmãs. Duas miúdas. Duas miúdas, uma talvez com oito anos, a outra com cerca de doze.  A mais pequena trazia vestido um biquini verde mar, a mais velha um burquini, molhado, colado ao corpo, a sua cabeça estava coberta com o véu, também ele encharcado. Olhei para elas e desviei o olhar, fingi que não as vi. Sei que continuaram a andar de mãos dadas pela praia, porque depois furtei-me a olhar de novo para ambas, quando já iam mais longe. Não comentei nada com ninguém. Parece-me que as outras pessoas que estavam na praia fizeram o mesmo que eu. Havia uma normalidade naquilo tudo, na praia, no sol, no calor, no mar, no sal que tínhamos na pele.

 

Depois de tudo o que se tem falado e escrito por todo o lado, não sinto uma normalidade num burquini. 

 

O ano passado em Troia já tinha presenciado o modo desta vestimenta de banho de mar e piscina, a autora deste tipo de fato de banho disse que o criou para as mulheres terem mais liberdade, grande verdade. Assim observei que enquanto as mulheres se banhavam completamente vestidas, com aquele tecido todo colado ao corpo e um calor infernal na toalha, os homens banhavam-se, com as barriganas de fora, em tudo idênticos aos ocidentais.

 

Dizem que devemos respeitar as tradições, que ninguém tem nada com isso, cada um faz o que quer. Será que a miúda que vi ontem escolheu andar assim vestida de livre e espontânea vontade? Porque têm as mulheres de esconder o corpo, enquanto os homens podem mostrá-lo? Somos nós, as mulheres, uma subespécie?  Temos (ou devemos) de nos submeter de forma serena às (ditas) tradições? 

 

Eu quero para a minha filha, e para todas as meninas que conheço, e  para as outras que existem por esse planeta fora, e pelas que vão nascer,  um mundo livre de tradições que são apenas máscaras de vontades masculinas. 

 

 

Alice Alfazema