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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Sensação

14
Jan24

Sinto-me assim uma coisa preciosa, fora do tempo, deslocada nas palavras, sabedora de outros saberes, por enquanto sem importância, sou como aquela mobília de outra época e de outras emoções, coisas vividas ao relento, nas margens de um rio, sob as estrelas, ao frio, ao calor sem protector solar, comendo iogurte com colheradas de açúcar, saboreando o granulado doce que se colava à língua, beijos mornos no areal escaldante, sapatos únicos, não no sentido de exclusivos, carcaça estaladiça com manteiga feita com natas do leite trazido pelo leiteiro, gritos na rua, risos sem remorso, alcunhas que faziam sentido, coisas sem sentido que tinham graça, a graça dos dias compridos desprovidos de ausências. 

Sinto-me coisa de museu, de palavras em desuso, de colheitas de alfarrobas e de subidas a montes de amêndoas colhidas com casca mole e casca dura, a pinhões rachados na pedra debaixo de grandes pinheiros mansos, a estradas ladeadas de grandes árvores, a sombras frescas e amoras doces cheias de poeira dos caminhos feitos de areia e pedra miudinha. 

Sinto-me antiga, quase com pele de seda, fazendo lembrar o papel de cetim, canetas de bico fino escrevendo em páginas de papel de linhas azuis, com cuidado para não as perfurar, cuidando da letra e do erro para não ter que as amarrotar e deitar fora.

Sinto-me fora de moda, porque parece-me que já usei tudo, que não há nada novo ou desconhecido, coisas de riscas e de quadrados, de folhos e de plissados, franzidos e curtos, compridos e berrantes.

Sinto-me cheia, de tudo e de nada, uma coisa estranha, mas conhecida, calma, mas desesperante, eu mesma, mas não eu de sempre, mas a de agora, e sabe-se lá mais o quê, assim como peça de museu, avistada, olhada com interesse, mas sem se saber bem o que é.

Pintalgadas de sol

17
Nov23

IMG_20231111_100715.jpgOs prados estão a renascer, trazendo consigo os tapetes de veludo verde musgo, lembrando que daqui a nada é natal, a Natureza acolhedora ao olhar, sarapinta de amarelo o pequeno caminho que ainda resta, do outro lado as casas crescem, como cogumelos venenosos que matam árvores, lagartos e pássaros, mais todos os outros impossíveis de enumerar. Em cada quintal uma banheira, a que chamam de piscina, o resto...o resto são pedras meus senhores.

Para aqueles que pintam ideias

como se as palavras fossem cores (e não coisas meramente intelectuais)

21
Mai23

IMG_20230519_083009.jpg

É interessante vermos quantas vezes mudamos ao longo da vida, do sentimento que tivemos inicialmente, qual semente perdida no cosmos individual, cuja capacidade é infinita, consoante o momento e a ocasião vivida. 

Já fui árvore junto dos meus, já fui erva daninha para muitos, mas aquilo que sou pouco importa agora neste exacto momento, porque fui feita de muitas ocasiões. Projectar-me para fora de mim é um exercício aliciante, permite-me exercer o meu livre arbítrio de forma silenciosa e solitária. 

Recorro a um dicionário que é só meu, cujas palavras apenas têm o seu significado segundo as minhas próprias experiências, a ninguém mais interessa o valor que lhes dou, são segundo os meus valores e as minhas crenças as quais sinto e vejo à minha maneira, no entanto admiro-me sempre que encontro outros como eu, sinto-os  como velhos conhecidos no tempo e no espaço, coisa estranha de se dizer, muito mais de se escrever, e aí encontro a mesma casa, cada qual com a sua entrada.

Tenho recordado pessoas, sensações, ideias e sentimentos, não só de pessoas que conheço realmente, mas também daquelas que apenas conheço nas suas palavras, não é reflexão que se faça num só dia, são coisas de anos, e chego à quase conclusão que as conheço, que precisava daquela ideia para alavancar outras, que os sentimentos são comuns, que algo nos fez caminhar de encontro ao mesmo carreiro, no entanto continuo à procura, tal e qual uma formiga num carreiro já conhecido, ou como raízes de árvores que se entrelaçam abaixo do solo, sem que ninguém perceba a conexão, coisa invisível, mas que está visível, tanto em baixo como em cima. 

Pensar por pensar, numa busca de ideias sem pretensões de chegar a uma opinião, porque as opiniões mudam e as ideias fluem alcançando outras sinapses, as opiniões são elementos académicos, enquanto as ideias são criatividade pura, chegam de rompante e depressa se esfumam é preciso agarra-las, mas elas não se querem em gaiolas, querem-se livres para que outros possam também usufruir desse lado ilógico do Ser.

Pergunto-me o que tenho trazido e o que levo comigo, sei que agora é mais que ontem, mas o futuro pode ser menos que o presente, no entanto isso não é impedimento de nada, são opções.

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros. Treze anos disto.