Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

A olhar o tempo

30
Jun11

 

 

Também chego sempre a horas aos encontros, mas abro as cartas uns meses depois de as receber e respondo, se me lembrar, passados uns anos. Quando o telefone toca, nem  o ouço. Se digo a alguém «telefono-te amanhã», é certo e sabido que telefonarei passado um mês, não por maldade, desleixo ou arrogância, mas porque também vivo numa espécie de presente eterno. No meu tempo interior, um mês, uma semana, um dia, valem o mesmo.

 

in, Cada palavra é uma semente, Susana Tamaro

 

 

Alice Alfazema

A vida é um ato suspenso

29
Jun11

 

  

A vida é um ato suspenso, pela morte. Morrer jovem não faz sentido porque há tanto por fazer, dizer, receber…mas, morrer velho, e sem nunca ter feito nada daquilo a que o sonho chamava é, talvez, ter morrido jovem, de uma outra perspectiva. A vida é o fio ténue que nos separa da certeza da morte, que é aquilo de que mais se tem a certeza e, que é a certeza mais desprezada.

 

A mistura do quente e do frio, do ódio e do amor, da noite e do dia, do rir e do chorar…das emoções, pois o que nos transporta nesse fio ténue são: as emoções, e são elas que movem o espaço e o tempo, esse tempo que é tão valioso…

 

A perda é o lugar inatingível, que não tem espaço nem tempo, somente a energia lembrada, de quem nos deixou, de quem perdemos, de quem queremos de volta; essa energia que paira sem corpo, num bailado de lembranças, na música dos dias que passaram, nos verões e primaveras, no perfume, na brisa que sopra…

 

É bom que as lembranças tragam sempre mais sol que lágrimas, deixar lembranças assim é talvez o melhor testamento que se pode deixar...

 

 

Alice alfazema

Quero o meu salário

27
Jun11

 

 

Num caminho difícil, de pedras e muita areia,

Sob um sol escaldante,

Seis cavalos puxavam uma carruagem.

Mulheres , um padre, velhos, todos desceram;

Os animais suavam, sofriam, não aguentavam mais.

Uma mosca apareceu e aproximou-se dos cavalos,

Tentando, com o seu zumbido,

Animar os tão sofridos.

Morde um , morde outro e voa sem parar

Certa de  que fará a máquina funcionar.

Senta-se nas rédeas e no nariz do cocheiro.

Enquanto o carro vai rodando,

Vê  as pessoas caminhar,

E acha que o mérito é dela.

Vai e vem, põe mãos à obra: mais parece

Um sargento a fiscalizar a manobra.

Precisa de fazer avançar a tropa

E alcançar a vitória.

A mosca, a certa altura, pôs-se a reclamar

De que só ela tinha de trabalhar,

Que ninguém a ajudava

A tirar os cavalos de dificuldades.

O padre lia no seu livro:

Que perda de tempo! Uma mulher cantava:

Não era dessa música que ela precisava!

Então, resolve cantar-lhe ao ouvido

E cria a maior confusão.

Depois de muito trabalho,

A carruagem chega ao destino.

- Vamos respirar - disse a mosca aliviada. -

Eu fiz tanto para que chegassem à planície,

Que agora, senhores, quero o meu salário.

 

Jean de La Fontaine

 

De quem é o mérito?

 

Alice Alfazema

Manhãs de cetim

26
Jun11

 

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

 

É ter de mil desejos o esplendor

E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!

 

É ter fome, é ter sede de Infinito!

Por elmo, as manhãs de cetim...

É condensar o mundo num só grito!

 

E é amar-te, assim, perdidamente...

É seres alma, e sangue, e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda a gente!

 

 

Florbela Espanca

 

Alice Alfazema

Pág. 1/8